Não se argumenta com um cachorro louco
A frase é antiga. Porém, não
há como a negar: não se negocia com cachorro louco. A metáfora, extraída
diretamente da vida, explica muita coisa em nossas relações sociais –
especialmente hoje e não só no Brasil.
Foi em 1936 que se publicou
um texto essencial para se começar a falar sobre este país e seus filhos.
Refiro-me a Raízes do Brasil, de
Sérgio Buarque de Holanda. Lá está o seu capítulo fundamental, o Homem Cordial. Hoje já estamos fartos de
saber que não se trata de cordial no
sentido do educado, do polido, mas daquele que se move pelas emoções – no que
isso tem de melhor e pior. Nós, povo brasileiro:
a)
Ficamos arrepiados ao ouvir o Hino Nacional
na abertura do jogo decisivo.
b)
Choramos forte na reportagem que mostra a
superação da mãe que só dorme quatro horas por noite, para andar oito
quilômetros ao amanhecer para levar os filhos à escola, alimentando-os com
raízes selvagens cozidas (o comentário meritocrata de que “quem quer, consegue”
é esperado).
c)
Aplaudimos o fato de o detento por roubo ser
torturado na prisão, por policiais ou outros prisioneiros. Ele merece sofrer.
Vagabundo! Tem que apanhar!
É o mesmo povo. Em várias
classes sociais, escolaridades, rendas etc.
E, em nenhum momento,
procuramos entender a letra do hino, a importância do campeonato ou o tipo de
sistema que obriga aquela mãe a buscar uma desesperada sobrevivência em meio à
miséria. Não há, na vida cotidiana
(ou seja, fora da academia – e ainda é pouca e pobre), uma reflexão sobre
nossas natureza e cultura. Essa postura já é suficientemente ruim, pois nos
priva de autoconhecimento tanto de nossas realidades (que são várias) quanto
das identidades (idem). Isso nos atrasa, nos deixa à mercê das interpretações
que outros fazem e nos outorgam (interpretações essas que visam os interesses deles, não os nossos). É muito ruim;
mas, não chega a ser assustador.
O terceiro exemplo, não. Ele
se torna, sim, aterrorizante. Falo do ladrão que apanha: isso não está na lei
brasileira; aliás, é expressamente
proibido pela legislação. E aplaudimos. Há algo errado aí. Como nos
emocionamos tanto com a partida de futebol e com o sacrifício materno e, ao
mesmo tempo, aprovamos a transgressão da lei para fazer sofrer um transgressor
da lei? Isso não nos faz, nós bem nascidos, educados e que nos emocionamos com
coisas tão bonitas, não nos faz, repito, merecedores de cárcere – com todos os
sofrimentos desejáveis ao criminoso?
Aí está o nosso cachorro
louco. Tomados por uma emoção, exigimos a vingança. Não a justiça. TODAS as
vezes em que se mostra a manifestação de uma comunidade que perdeu um de seus
membros (assassinado, em geral), vemos e ouvimos o coro indignado: “Jus-ti-ça!
Jus-ti-ça!”. A revolta é real; o desejo, não. Não se quer justiça, mas
vingança. Basta alguém dizer isso e é obrigado a ouvir: “e se fosse com seu
filho?!”. Minha reação, provavelmente, seria igualmente emocional e vingativa;
tentaria buscar a justiça com as próprias mãos. É humano. É estar fora de si,
sob violenta emoção (para usar a linguagem jurídica). Não está em sua condição
normal, não há como argumentar com essa pessoa – como se fosse um cachorro
louco.
Mas, uma sociedade não pode
agir emocionalmente. Aliás, é para isso que ela existe e elabora leis, a fim de
conter os arroubos personalistas e buscando a equanimidade entre seus
integrantes. A ideia de Freud (em O
mal-estar na Civilização) de que a civilização decorre de repressão das
pulsões naturais aparece e se justifica aqui (há discordâncias importantes;
mas, uso a ideia para efeito de argumentação). Democracia não é “ser livre para
fazer o que quer”. A lei nos impede de um monte de coisas, visando o bem comum.
Essa é a realidade em todo o Mundo (minimamente democrático, ao menos).
Encaminho para o final. Esse
nosso trabalho a muitas mãos – característica essencial do Teatro, hoje também
na dramaturgia – busca introduzir, pela via da Arte, esses temas na vida
cotidiana a que me referi parágrafos acima. Não chegaremos a fixar e expandir
um conceito sólido de cidadania sem entendermos – e PRATICARMOS! – essas ideias
na vida real, no espaço da família, do bairro, da comunidade. Como sempre (é um
vício antigo e, creio, irreparável...) imagino uma saída pela Educação; no caso
presente, apoiada na Arte. Será esta que nos fará perceber e refletir sobre
nossa condição. Entendo, claro, que temos mais de cinco séculos (meio milênio!)
de sociedade autoritária e violenta. Não será com uma peça de Teatro que iremos
mudar essa realidade. Mas, temos que aproveitar cada oportunidade e
(re)começar, sempre!
É preciso vacinar esse
cachorro, para acabar com essa loucura toda.
(Prefácio para a peça Cachorro Louco, de Felipe Scalzaretto,
cujo tema central é o linchamento – como forma de expressão jurídico-cultural
brasileira)
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